Apenas outro dia

Alvorece o dia, apenas mais outro. Tudo parece tão fixo, os horários tão determinados, as pessoas tão exatas em relação às suas ocupações no mundo, que com ele, Pietro, não poderia ser diferente. Nessas circunstancias, até o tédio havia sido derrotado. Havia apenas uma vida, às vezes bem próxima da orgânica quanto deveria, considerando nossas necessidades, e às vezes, longe de ser assim, pois que nenhuma vida poderia sobreviver às fomentações dos vícios.
Enquanto muitas pessoas estão preocupadas em reclamar a Deus ou a qualquer entidade que seja as suas frustrações, das quais elas mesmas são culpadas, para Pietro nada mais importava. Tudo era previsto... Mas apenas tudo o que fosse lhe causar mal. Tal atitude em relação a si e às pressões exteriores era como uma aceitação absoluta da realidade. Nada mais lhe causava estranheza. A dor fazia parte da sua rotina, e se não o fizesse um dia, certamente que ele estaria preparado para com passividade recebê-la. É bom contar com a sorte, mas pode ser que ela falhe; assim ele pensava, talvez inconscientemente. Tal como a morte, assim são as derrotas, as frustrações, os vícios, as lamentações.
Pietro não tinha mais nada que julgava ter valor. Possuía, ainda, para sua infelicidade, a consciência. Sentia, quando se permitia sentir, ou seja, quando não negava a si mesmo, grande humilhação por viver de forma tão ultrajante. A consciência, dela Pietro era escravo, e por mais que corresse, ela estaria bem ali ao seu lado para aprová-lo ou não. Maldita razão! Ele sempre exclamava no silêncio do seu descontentamento.
O desejo mais ardente de todos que ele poderia ter só era o de esquecer-se de si absolutamente. Pois sabia que lá no fundo ainda não havia esgotado toda responsabilidade pela vida que ele deveria dirigir. Ele buscava uma forma de todos o verem como vítima da situação, aliás, situações, porque não eram poucas. Esta é a melhor maneira de, conforme nosso instinto primordial, sobreviver à custa do poder que executamos. Falo de pessoas que procuram responsabilizar outras por suas falhas. Ainda é difícil compreender, pois parece impenetrável o âmago do ser humano enquanto não tivermos encontrado aquilo que nós reconhecemos em nossa natureza, por fazer parte de nós.
Quem culpar, nessas condições, é a tarefa mais fácil. É supor que todas as vidas estivessem interligadas. Embora elas estejam e isso já é suficiente para que elas provoquem uma reação em cadeia, cada uma possui autonomia o bastante, mais para entender que as ações são seguidas por outras do que para fazer valer o direito à virada.
Pietro considerava tudo ao seu redor como motivo de sua trajetória decadente. Seu casamento infeliz, seus filhos, estes fatos o fizeram ainda mais a duvidar da felicidade. É daí que resulta a nossa falta de fé em firmar uma relação com alguém, a pensar nos filhos como presentes divinos, que nos encherão de prazer e alegria, honra e orgulho durante o momento em que viverem ao nosso lado. Mas não, as coisas mudaram, pois a vida de Pietro, tal como a de muitos, são tão exemplares que beiram ao tradicionalismo repassar tais experiências como sendo a verdade das coisas. E nós somos induzidos por estas idéias, porque elas nos são fornecidas desde pequeninos, quer por experiência de um de nossos entes queridos, quer pelo simples fato disso atormentá-los, de modo que eles agora ditam os seus pensamentos a fim de nos orientar. Pois quando nos dizem que o casamento é a ultima coisa a ser considerada, na realidade, é como dizer para nós que o amor é tão incerto e que por isso quando for conveniente, podemos ceder a esta crença. Os filhos passam a ser encarados como avassaladores de vidas, sugadores do tempo e das finanças. Esse olhar com que o enxergamos possui uma força tão oculta que a causa dela explica a razão de a gente não saber amar o próximo.
Na verdade, tanto o casamento quanto os filhos, são nossos maiores presentes. Se por um lado não consideramos o amor como uma crença e, por conseguinte, não o colocamos em ultimo plano, isso não significa que o colocaremos em primeiro lugar por estarmos atemorizados pela idéia e extrema ansiedade de que agora é a hora.
No caso de Pietro, tudo o que era bom e que envolvia a vida de casal havia se esgotado. Aquela intensa atração pela sua esposa, ou melhor, pela senhorita que ele paquerava, com o tempo, sofreu tamanha inversão, que ele hoje olhava para ela e sentia repulsa. A beleza, a cada dia que se passava, parecia esvair-se dela. Ele, porém, não sabia que ela pensava o mesmo. Foi quando então Pietro viu seu casamento desmoronar. Com o pedido de divórcio pela esposa, aquela vida hipócrita e forçosa, que consentia pelos dois em ser estável até mesmo com um casamento fracassado, e isso por causa dos filhos, agora sofreria mudanças. De uma vida, se partiu agora em mais quatro.
Foi a partir dessa ruptura que a vida de Pietro abalou-se por completa. O pouco de sentido que ainda restava, esgotou-se. Agora ele havia perdido o rumo de vez. Suas inclinações às bebedeiras já lhe forneceram bastantes motivos. Foram com todas as chateações que ele cometeu, quando bêbado, contra sua esposa que a levou a pedir o divórcio. Chegava em casa quebrando as coisas, procurando motivo para discutir, forçava-a ao sexo, etc. Numa dessas noites, fora capaz de cometer adultério dentro de sua própria residência. Seu filho caçula, Bruno, que evidenciou a mãe a flagrante cena de sexo na garagem.
A esposa de Pietro, Cecília, casou-se muito nova. Sua família nunca aprovaria o pedido de casamento feito por Pietro não fosse a gravidez precoce da garota. Ainda com 16 anos, Cecília se viu grávida. Vinda de uma família rigorosa, e que prestava contas à honra de seu nome, casar não era opção, mas sim obrigação. É aí que eu me pergunto se vale mais se entediar numa vida em casal e acometer aos filhos com uma realidade fora do comum, cheia de mentiras e enganações, ou se compensa sacrificar-se e sozinha cuidar do fruto que o prazer concedeu.
Cecília esteve assim, entre a cruz e a espada. E entre decidir recusar ao pedido de Pietro, se viu antes conversando com os pais mostrando-se insatisfeita com as suas decisões prematuras. Se pudesse voltar no tempo, não pensaria tão somente na conveniência da sexualidade. Tal é o modo de vida dos jovens, eles crêem viver bem porque cedem à conveniência da sexualidade, da fornicação. Viver, curtir, sexo... Mas Cecília, logo quando pronunciou que não queria se casar com Pietro, mas mesmo assim daria luz ao filho, o seu pai, senhor Osvaldo, já levantou a voz e em alto e bom som exclamou que se ela não fosse se casar, ele também não teria a obrigação de cuidar dela, pois não era mais uma moça como imaginava, já era perversa. De todo modo, ela sabia que na casa de seus pais ela não moraria mais. Seu pai era homem sério, muito sistemático. Um pai durão. Sua mãe, o oposto. Vendo-se sem saber o que fazer, pois caso renunciasse ao matrimonio, teria que encontrar meios de sobreviver em outro lugar e com um filho para criar. Jovem, imatura, inocente, ingênua, sem qualificação para o mercado e sem emancipação ideal, casar era a única alternativa. Sua sabedoria consistia nisso. E assim foi.
Foi tornando os pensamentos ao passado que Cecília percebeu como alterou o seu destino de forma tão drástica. Agora, apercebida por isso e com um sentimento de profundo arrependimento, não queria mais de modo nenhum viver com um homem que a mal tratasse, que já a tivesse traído, que a valorizasse mais que às bebidas e noites de festanças. Enfim, levou em consideração tudo o que não lhe agradou nestes anos de casamento, e como seus filhos já estavam numa idade mais razoável para entenderem as adversidades da vida, pois, caso esta eventualidade ocorresse, ela já os faria compreender.
Cansada disso tudo, procurou uma nova residência, uma casa simples e com um aluguel adequado às suas finanças. Assim, ela se foi com os filhos. Por mais que o sentimento houvesse acabado, no fundo, ela reconhecia, que duas vidas assim não podem se separar, pois se tornam apenas uma. Deixou de lado todo o romantismo para que pudesse tomar a decisão sem remorsos e certa de estar fazendo o bem por todos, para si, para os filhos, e até para Pietro. Ela queria fazê-lo sentir o que perdeu. Estava cansada de alertá-lo que hora ou outra ele poria tudo a perder definitivamente. Este dia chegou, mas para Pietro, foi apenas outro dia.
Como Pietro estava indo de mal a pior, como o único objetivo que o encantava era o de se fazer omisso, de fugir de si. Neste dia que para ela era o início de um novo ciclo, para ele nem sequer havia terminado. Como negar a sua existência sempre foi a tarefa que ultimamente ele se mostrava mais hábil, se deu conta de tal situação uma semana após o ocorrido. A melhor maneira de fugir do mundo era caminhar pelos vícios, pelos abismos das drogas. Nada melhor para roubar a sua consciência.
Sua rotina resumia-se em às vezes, acordar com pontualidade toda manhã, sair para dar umas voltas pelas ruas, reencontrar companhias, medingar, começar desde cedo aquele processo de autodestruição. Isso o ocupava quase o dia todo. Tinha o trabalho de ser inconveniente, causar incomodo aos outros, grande era a sua dependência das demais pessoas para conseguir efetivar a fuga do seu mundo particular. Seus pensamentos, mesclados às suas emoções, eram o seu inferno mental. Não tê-los sempre foi a meta primordial a ser alcançada.
Perambulando por aí, teve a sorte de conseguir uma quantia em dinheiro suficiente que o fez se isolar de tudo e todos, por alguns dias. Bem mais tarde, embora ele pensasse ter ocorrido a pouco tempo, se deu conta que a sua esposa e filho ali não estavam. A confusão sem sua cabeça era tanta, que ele nem chegou a considerar o pedido de divorcio. Embora fosse apenas outro dia, Pietro tinha a estranha sensação de que algo impossível tinha acontecido. Isto é, as coisas pioraram. Ele estava só.